terça-feira, outubro 16, 2007

Militância em movimentos coletivos e obtenção de capital político: da busca pelo bem comum às regras do jogo

1- Introdução

Governador do estado, secretário municipal de Educação, presidente da república. Antes de ocupar cargos que expressam capital político objetivado, muitos desses profissionais da política passaram pelos chamados movimentos sociais, sejam eles o Movimento Estudantil, o Movimento dos Sem Terra, entidades ligadas à Igreja Católica, sindicatos, associações de moradores, organizações não-governamentais, entre outros.

O presente artigo traz uma breve avaliação da relação entre a militância em movimentos coletivos e a obtenção de capital político. O prestígio conquistado por aqueles que militaram nesses movimentos costuma ocorrer nos partidos de esquerda, que têm uma maneira militantista de conceber a política, e apresentam certa proximidade com tais movimentos. Dessa forma, este trabalho traz as avaliações de Coradini e Gaglietti a respeito da socialização política dos militantes do Partido dos Trabalhadores (PT) em Porto Alegre.

Ambos os autores citados anteriormente são muito influenciados pela perspectiva de Bourdieu em seus estudos. O conceito de habitus, de que fala Bourdieu, será aplicado neste trabalho para ajudar na compreensão da relação entre militantismo e obtenção de capital político. Essa noção será fundamental para entender a forma como a passagem dos militantes por movimentos sociais contribui para o conhecimento a respeito das regras do jogo da política.

Novamente, Bourdieu foi de fundamental importância para compreender melhor a conduta dos militantes através da sua avaliação a respeito do interesse. Bourdieu dirime a visão encantada e ingênua a respeito do desinteresse dos militantes, que muitas vezes se apresentam ou são vistos como pessoas desinteressadas, pois seriam indivíduos comprometidos acima de tudo com a coletividade. A noção de lucro simbólico e as recompensas encontradas na sociedade para o “desinteresse”, de que trata Bourdieu, ajudam a construir uma perspectiva mais aprofundada a respeito das diversas motivações e recompensas da militância pela atuação em movimentos coletivos.

Se este trabalho apresenta as aproximações entre o campo político e o campo militante, é importante ressaltar também as distinções entre essas duas esferas, diferenças essas que contribuíram para a tentativa de definição de um conceito de capital militante, proposta por Frédérique Matonti e Franck Poupeau. Ao mesmo tempo em que se afastam, os capitais político e militante se aproximam na medida em que o capital militante pode ser convertido em capital político.

Se a entrada nos movimentos sociais pode estar relacionada à defesa de “causas” ligadas ao bem comum, nos movimentos coletivos também podem ser dados os primeiros passos de futuros prefeitos, governadores, entre outros, no sentido de acumular conhecimentos sobre como se movimentar no campo político. Através da militância em movimentos sociais, os profissionais da política podem tanto obter algum aprendizado necessário para serem bem sucedidos no jogo da política, como podem conseguir prestígio dentro da política partidária, em se tratando dos partidos de esquerda, que valorizam a participação em movimentos coletivos.

2- Primeiros passos na militância

Mauro Gaglietti (2003), em seu estudo sobre os militantes do Partido dos Trabalhadores da cidade de Porto Alegre, observa que a maior parte dos militantes do PT passa primeiro pelo engajamento em algum movimento coletivo para então adentrar na política partidária. Os dados apresentados por Gaglietti (2003, p. 88) apontam que 63% dos militantes começaram a atuar no PT quando estavam no Movimento Estudantil, 8.5% em sindicatos, e 23% nos movimentos de juventude ligados à Igreja Católica.

Percebe-se que a maioria dos militantes do PT iniciou a militância quando integrava o Movimento Estudantil. Gaglietti (2003, p.94) mostra que grande parte dos militantes estudou em instituições públicas, entidades onde o Movimento Estudantil é mais forte devido à influência dos discursos de esquerda de determinados professores e do contato que os estudantes têm com manifestações como a greve.

Segundo Coradini (2002, p. 109), a política partidária, para os militantes dos partidos de esquerda, nunca está desvinculada de outras esferas de militância, como as associadas ao Movimento Estudantil, sindicatos e movimentos apoiados por igrejas. Coradini (2002, p.114) mostra ainda que o baixo nível de escolaridade é compensando em alguns momentos pela atuação em movimentos sociais, como é o caso da responsável pelo Gabinete de Relações Comunitárias, uma ocupante de cargo do primeiro escalão sem curso superior, mas vasta experiência na “militância comunitária”. Já Gaglietti (2003, p.93) aponta que o baixo nível de escolaridade é compensando pelo capital político acumulado em movimentos sociais principalmente entre aqueles que participaram de organizações clandestinas de esquerda nas décadas de 60 e 70 e no início de 80.

Coradini (2002, p. 109) ressalta que a militância em movimentos sociais influencia a forma de os militantes do PT lidarem com a administração pública. Os militantes levam para sua atuação uma forma militantista de conceber a política, e instrumentalizam seus conhecimentos obtidos em instituições como a universidade. Eles aproveitam diversos valores defendidos por movimentos sociais, como “participação popular” e “gestão democrática”, como também utilizam de forma instrumental teorias das Ciências Sociais, do Direito, entre outros, para colocá-las a serviço da prática. Essa perspectiva militantista de ver a política dá um sentido de manifestada ideologização do trato das políticas públicas, indo para além da valorização da competência técnica e marcando a administração com um sentido de missão em busca de justiça social.

3 – “Desinteresse” e militantismo

Na definição de Gaglietti (2003, p. 138) a respeito dos padrões de militância, muitos militantes advindos dos movimentos sociais se enquadram em seu primeiro padrão, chamado de missão. De acordo com Gaglietti, esses militantes atribuem uma função messiânica à política, baseada na devoção a uma “causa” vinculada aos ideais socialistas e à Teologia da Libertação. Tais militantes eram influenciados pelas teorias marxistas e buscavam a construção de uma sociedade comunista, ou, no caso dos militantes cristãos, traçavam o vínculo entre o comunismo de Marx e os valores de amor ao próximo defendidos por Cristo. O exercício de um cargo por esses militantes é visto como uma oportunidade de contribuir para o bem coletivo, e não como uma forma de ascender na hierarquia política.

Dessa forma, muitos militantes podem parecer desinteressados no desempenho de suas funções. Entretanto, Bourdieu (1988, p.137) tem uma noção de interesse que vai para além das finalidades econômicas e que abarca os conceitos de lucro simbólico, capital simbólico, interesse simbólico. De acordo com o autor, a noção de interesse funciona como um instrumento de ruptura com a mistificação das condutas humanas. Ele afirma que os agentes sociais não realizam atos arbitrários e que não fazem sentido para as Ciências Sociais, mas suas ações são motivadas por interesses, manifestos ou não, estratégicos ou não.

“Ao introduzir a noção de capital simbólico (e de lucro simbólico), de certa maneira, radicalizamos o questionamento da visão ingênua: as ações mais santas – a ascese ou o devotamento mais extremos- poderão ser sempre suspeitas (e historicamente o foram, por certas formas extremas de rigorismo) de terem sido inspiradas pela busca do lucro simbólico de santidade ou de celebridade” (Bourdieu, 1988, p.150)

Bourdieu (1988, p.152) defende que o desinteresse acontece nos universos sociais onde ele é reconhecido, como é o caso do campo militante. Destarte, um ato aparentemente desinteressado pode trazer lucro simbólico para o agente social. No campo militante, em que a dedicação total à “causa”, e a submissão ao bem coletivo são vistos com bons olhos pelos demais agentes sociais, o militante obtém capital simbólico na sua dedicação aos valores de justiça social. Como afirma Bourdieu (1988, p. 153), a universalização apresenta seus lucros, já que em quaisquer sociedades a submissão ao bem comum é tida como conduta virtuosa.

Gaglietti (2003, p.127) mostra os fatores que influenciam na conquista de um cargo na administração pública, entre eles, o tempo de dedicação ao partido, a intensidade do engajamento, a fidelidade à legenda, a defesa das chamadas minorias, e, por último, a atuação em movimentos sociais. De acordo com o autor, os militantes mais ligados a esses movimentos coletivos têm mecanismo mais sofisticados para ocultar qualquer forma de interesse numa suposta compensação pela sua militância. Os militantes não costumam defender a sua nomeação para algum cargo, o que geralmente é feito por outro militante. Segundo Gaglietti (2003, p. 127), quanto maior é a influência dos ideais socialistas e da Teologia da Libertação sobre o militante, mais forte é a ocultação de possíveis interesses na obtenção de cargos ou na ascensão na hierarquia partidária.

4- As regras do jogo

“Com efeito, nada é menos natural do que o modo de pensamento e de ação que é exigido pela participação no campo político: como o habitus religioso, artístico ou científico, o habitus do político supõe uma preparação especial. É, em primeiro lugar, toda a aprendizagem necessária para adquirir o corpus de saberes específicos (teorias, problemáticas, conceitos, tradições históricas, dados econômicos, etc.) produzidos e acumulados pelo trabalho político dos profissionais do presente e do passado ou das capacidades mais gerais tais como o domínio de uma certa linguagem e de uma certa retórica política, a do tribuno, indispensável nas relações com os profanos, ou a do debater, necessária nas relações entre profissionais. (Bourdieu,1930, p. 169)

A política é descrita por Bourdieu como um jogo, e o bom jogador é aquele que conhece as regras do jogo. A noção de habitus descrita por Bourdieu (1988, p. 144) define que o habitus estrutura a percepção do universo em questão, bem como as formas de agir nesse universo. No campo político, o habitus abarca as competências cognitivas para compreensão desse mundo, constitui um conjunto de conhecimentos que permite interpretar os signos próprios do âmbito da política, bem como o sentido de como movimentar ‘as peças no tabuleiro’.

De acordo com Bourdieu (1989, p. 22), o habitus representa um conjunto de práticas distintivas de um determinado espaço social. As diferenças que tornam o espaço político um espaço diferente de outros espaços sociais formam uma linguagem, uma série de signos distintivos, de esquemas classificatórios e de categorias de percepção.

A leitura desses signos, o domínio da linguagem própria do espaço político e a incorporação dos seus princípios de di-visão do mundo social, são apreendidas inicialmente na militância em movimentos coletivos e, posteriormente, na militância na política partidária. O engajamento em movimentos sociais forneceu recursos importantes para os militantes, recursos esses que foram potencializados na sua entrada num partido político, como foi observado por Gaglietti (2003, p. 112). Os militantes observados por Gaglietti (2003, p. 105) adquiriram no movimento estudantil competências como a capacidade de falar bem em público, qualidade adquirida após participarem de diversas reuniões, assembléias, entre outros. O domínio de uma linguagem e de uma retórica política de que fala Bourdieu (1930, p. 169) pôde ser adquirido em parte nos espaços de socialização política encontrados em movimentos sociais.

As diversas experiências que os militantes têm nos movimentos coletivos contribuem tanto para lhes auferir prestígio junto aos demais militantes do PT, como foi observado nos estudos de Gaglietti (2003) e Coradini (2002), como oferecem recursos para incorporação do habitus da política pelos militantes. A militância em movimentos sociais é um dos fatores levados em conta para a obtenção de cargos na administração pública.

De acordo com Bourdieu (1930, p. 195), quanto mais o capital político se institucionaliza, tanto mais os militantes se distanciam da “causa” e se infiltram na busca por clientes, ou eleitores, e se engajam na conquista do aparelho, que pode lhes oferecer um retorno material ou simbólico. Dessa forma, quanto mais o capital político se institucionaliza, quanto mais postos os militantes de um determinado partido ocupam na administração pública, maior é a dedicação à reprodução do aparelho. Com a entrada no partido e o contato com a máquina pública, os militantes costumam se afastar dos movimentos sociais, como mostra Gaglietti (2003, p. 91), ao afirmar que 85% dos seus entrevistados que ocupam cargos na administração pública não participam de movimentos sociais, sendo que 94,5% deles iniciaram a militância quando pertenciam a movimentos coletivos.

5- Capital militante e capital político

Apesar da aproximação entre os movimentos coletivos e a política partidária, e as formas de conversão da experiência em movimentos sociais em capital político, é importante traçar os limites entre capital militante e capital político. Frédérique Matonti e Franck Poupeau (2004) formularam uma tentativa de definição de capital militante por entenderam que este é um universo do qual o conceito de capital político não dá conta. De acordo com Frédérique Matonti e Franck Poupeau (2004, p. 4), o capital político funda-se na crença que um grupo dedica a uma pessoa socialmente designada, e é baseado numa espécie de fetichismo político através do qual o grupo se identifica e se reconhece na autoridade do portador do capital político. Já o capital militante é muito instável.

“Portanto, o capital militante distingue-se do capital político, o qual é em larga medida um capital de função nascido da autoridade reconhecida pelo grupo e, por essa razão, ‘instável’, incorporado sob forma de técnicas, de saberes e savoir-faire mobilizáveis em ações coletivas, lutas inter ou intra-partidárias, mas também exportáveis, conversíveis em outros universos, portanto, suscetíveis de facilitar certas ‘reconversões’” (Matonti e Poupeau, 2004, p.5)

O que diferencia, essencialmente, o capital militante do capital político é o fetichismo que envolve o capital político e a forma como ele é mais unificado e vinculado à crença na autoridade de uma pessoa socialmente designada e na autoridade da instituição, o partido, a que essa pessoa pertence. O capital militante é mais descentrado, e apresenta um aprendizado de técnicas, de um habitus, propriamente do campo militante, um saber acumulado em manifestações e demais ações coletivas, bem como na vivência dos conflitos dentro do partido e entre os militantes de diversas tendências, ou entre os militantes de diversos partidos. O capital militante pode ser convertido para outros universos, mas Poupeau e Matonti (2004, p. 9), afirmam que ainda é necessário buscar conhecer as lógicas pelas quais o capital militante é aproveitado em outros âmbitos.

Poupeau e Matonti (2004, p. 4) mostram que o capital militante é obtido e valorizado no campo político. Os autores renunciam à visão idealista do militantismo como engajamento em partidos e movimentos coletivos motivados unicamente pela submissão a uma “causa”, seja ela a causa dos trabalhadores, dos sem-teto, dos ambientalistas, e observam que através da militância os militantes aprendem uma série de noções de como se movimentar dentro do espaço político.

6- Conclusão

Os partidos de esquerda, como é o caso do PT, costumam estar vinculados a movimentos de defesa das chamadas “minorias”, pelo seu caráter de defesa dos “oprimidos” e pela busca de ideais de justiça social. Grande parte dos militantes observados por Gaglietti (2003) e por Coradini (2002) teve experiências em movimentos sociais antes de adentrar na política partidária. Os recursos obtidos nesses espaços de socialização política puderam ser aproveitados na entrada no partido, e a participação nesses movimentos proporcionou uma espécie de iniciação no espaço político.

O capital militante obtido nessas experiências pode ser convertido em capital político. Ao adentrar na política partidária, aqueles que atuaram em movimentos coletivos muitas vezes dão um sentido de “missão” no exercício dos cargos conseguidos na administração pública. Eles também costumam instrumentalizar o seu capital escolar, e vinculam o conhecimento de diversas ciências com a utilização prática.

Os militantes costumam se passar por desinteressados. Entretanto, sabemos que o interesse rege as condutas dos agentes sociais, é ele o elemento que dá sentido às atitudes desses agentes. O interesse nem sempre está vinculados a fins econômicos, e em determinados casos pode almejar um lucro simbólico. Alguns militantes encontram lucros simbólicos na sua passagem por movimentos sociais, ou mesmo lucros econômicos. A submissão aos ideais de universalização oculta o lucro simbólico obtido com o reconhecimento na sociedade obtido pela dedicação à causa, bem como a ascensão na hierarquia partidária. Quanto mais radicais são os ideais humanitários do militante, mais requintados são os eufemismos dos ganhos obtidos através da sua militância.
O capital militante pode ser convertido em capital político na medida em que os recursos acumulados na militância são potencializados com a entrada no partido político. O domínio da linguagem própria do espaço político, e a habilidade de falar em público são alguns dos recursos obtidos nessas experiências. Além disso, a militância em movimentos sociais é um dos fatores de peso para a ascensão na hierarquia partidária.

Na medida em que os militantes adentram nas instituições públicas, a tendência é o distanciamento dos movimentos sociais e o maior apego à manutenção do aparelho político. Apesar de os movimentos sociais constituírem uma espécie de iniciação em direção à política partidária, quanto mais envolvidos se encontram os profissionais da política com a administração pública, tanto mais se afastam das antigas “causas” e se afastam dos movimentos coletivos.

Referências Bibliográficas

GAGLIETTI, Mauro. PT: ambivalências de uma militância. Porto Alegre, 2003.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. RJ: Bertrand Brasil, 1998, 2° ed.

BOURDIEU, Pierre. Espaço social e espaço simbólico. Conferência proferida na Universidade de Todai em outubro de 1989.

BOURDIEU, Pierre. É possível um ato desinteressado? In: Razões práticas para uma teoria da ação. Tradução: Mariza Corrêa.

MATONTI, Frédérique e POUPEAU, Franck. O capital militante: tentativa de definição. Tradução: Ernesto Seidl. In: Actes de la Recherche em Sciences Sociales, n. 155, 2004, p. 5-11.

CORADINI, O.L. Escolarização, militantismo e mecanismos de participação política. In: Como se fazem eleições no Brasil / organizadoras: Beatriz M. A. de Heredita, Carla Costa Teixeira, Irlys A. F. Barreira – Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

Artigo produzido por Tatiana Hora Alves de Lima, graduanda em Jornalismo na Universidade Federal de Sergipe.

2 comentários:

B.Dunkel disse...

Olá

Você é estudante de C. Sociais? Pesquisa? Gostaria de conversar contigo.
Grata,
Lidiane

SUA COZINHA SIMPLES disse...

OLÁ,
que bom encontrar pessoas com uma percepção apurada acerca da política. Além disso, adorei conhecer alguém que leu o meu livro. A primeira edição é de 1999 e a segunda é de 2003, no caso, a primeira edição escrita, antes do PT chegar ao Governo do Rio Grande do Sul e à Presidência da República. Abraço