sexta-feira, julho 28, 2006


"Continuo com capacidade de raciócínio - já estudei matemática que é a loucura do raciocínio - mas agora quero o plasma - quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é feito por mim? ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena"

"Meus dias são só um clímax: vivo à beira"

"Sei que meu olhar deve ser o de uma pessoa primitiva que se entrega toda ao mundo, primitiva como os deuses que só admitem vastamente o bem e o mal e não querem conhecer o bem enovelado como em cabelos no mal"

"Vou crescendo com o dia que ao crescer me mata certa vaga esperança e me obriga a olhar cara a cara o duro sol"

"Quero a vibração do alegre. Quero a isenção de Mozart. Mas quero também a inconsequência. Liberdade? é o meu último refúgio, forcei-me à liberdade e aguento-a não como um dom mas com heroísmo: sou heroicamente livre. E quero o fluxo"

"Eu que detesto o domingo por ser oco"

"Mas de repente esqueço o como captar o que acontece, não sei captar o que existe senão vivendo aqui cada coisa que surgir e não importa o quê: estou quase livre dos meus erros. Deixo o cavalo livre correr fogoso. Eu, que troto nervosa e só a realidade me delimita"

"Ninguém saberá de nada: o que sei é tão volátil e quase inexistente que fica entre mim e eu"

"Embora às vezes grite: não quero mais ser eu!! mas eu me grudo a mim e inextrincavelmente forma-se uma tessitura de vida"

"Transfiguro a realidade e outra realidade sonhadora e sonâmbula me cria"

"Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário: sou sozinha, eu e minha liberdade"

"Embora tudo seja tão frágil. Sinto-me tão perdida. Vivo de um segredo que se irradia em raios luminosos que me ofuscariam se eu não os cobrisse com um manto pesado de falsas certezas. Que o Deus me ajude: estou sem guia e é de novo escuro"

"Vou parar um pouco porque sei que o Deus é o mundo. É o que existe. Eu rezo para o que existe? Não é perigoso aproximar-se do que existe. A prece profunda é uma meditação sobre o nada. É o contato seco e elétrico consigo, um impessoal"

"Tenho certo medo de mim, não sou de confiança e desconfio do meu falso poder"

"Porque estou cansada de me defender. Sou inocente. Até ingênua porque me entrego sem garantias"

"Não ter nascido bicho é a minha secreta nostalgia. Eles às vezes clamam de longe muitas gerações e eu não posso responder senão ficando inquieta. É o chamado"

Trechos de Água viva, de Clarice Lispector.

2 comentários:

Anônimo disse...

Poxa, Clarice Lispector é demais!

Anônimo disse...

Essas bem poderiam substituir as daquele recém lançado livro ridículo de auto-ajuda com fotos de Clarice.