sábado, maio 24, 2014

Operação Cajueiro - um carnaval de torturas (2014), Fábio Rogério, Werden Tavares e Vaneide Dias


Imagino que realizar um filme da importância de Operação cajueiro não seja nada fácil: os documentaristas são confrontados com a grandeza do tema e a “responsabilidade”, por assim dizer, de ser uma voz solitária em meio ao silêncio da mídia local (no passado e no presente) sobre o episódio de repressão violenta da ditadura militar em Sergipe. As cobranças são muitas e elas vêm de todos os lados: o filme precisava abordar esse e aquele fato, como se fosse um “dever de casa” do documentário dar conta de uma totalização histórica. Por outro lado, existem também as exigências estéticas, que caracterizam o filme como “quadrado”, como se todo documentário tivesse que experimentar em termos de linguagem cinematográfica (o que considero questionável, mas isso não quer dizer eximir o documentarista de estabelecer um compromisso com a relação entre forma e conteúdo, entre estética e política).

Primeiramente, não considero um problema um documentário como Operação Cajueiro ser um “talking heads” – aquele formato centrado nas entrevistas, mais preocupado com o que os personagens têm a dizer do que com o virtuosismo da imagem. Na verdade, se pensarmos que se trata de um documentário que aborda o terrorismo de Estado na sua face mais sombria, a tortura, os depoimentos dos personagens são realmente a matéria prima do documentário. Se a tortura é o meio que tem como fim último não fazer falar, mas sim calar, o documentário realiza um gesto político ao ir de encontro ao silêncio da repressão. Mas o problema é que neste filme a História se sobrepõe ao testemunho. Ou seja, a tentativa de abordar uma série de informações sobre o ocorrido prevaleceu sobre o que os personagens teriam para narrar. A tortura deixa marcas profundas na mente de quem a viveu, e o trauma exige o profundo respeito de uma escuta atenta, que abriga relutância, pausas, silêncios, reflexão. É extremamente necessária uma mise-en-scène documentária que acolha o testemunho dos personagens, que dê tempo para suas memórias emergirem. 

A montagem de Operação Cajueiro não concede aos personagens duração: suas falas se encontram fragmentárias, rasgadas por jump cuts (cortes no continuum espaço-temporal da tomada), embaralhadas com diversos outros depoimentos. Os personagens relatam acontecimentos dolorosos, chegam a chorar, e mesmo assim o corte os interrompe porque é necessário passar a outra coisa. Ressalto um problema: ouvi os diretores falarem em limitações temporais impostas ao filme (a obra deveria ter no máximo 30 minutos). O que me faz questionar sobre os danos que as imposições de editais podem infringir às obras audiovisuais. Mas outro problema, a meu ver, é o excesso de diretores: imagino a dificuldade de três diretores dialogarem para decidir o que entra e o que fica fora do filme, além da questão estilística, claro, considerando as diferentes concepções estéticas dos realizadores.

No que concerne à utilização das imagens de arquivo, este é o ponto forte do filme. O documentário se inicia com uma imagem de Geisel sendo ovacionado por uma matéria jornalística chapa branca da época, e ao seu lado o atual prefeito de Aracaju, João Alves (que foi prefeito biônico durante a ditadura militar), como também o ex-ministro do STF, Carlos Ayres Britto, e o senador Valadares. O filme utiliza a imagem de arquivo não como um documento histórico, uma comprovação de fatos do passado, mas usa a imagem de arquivo a contrapelo, pois subverte os significados da imagem produzida naquele contexto através da ironia e a atualiza colocando-a em choque com o presente. Vemos pessoas que apoiaram a ditadura militar e que, ainda hoje, têm um enorme poder político. As imagens de arquivo também são desviadas de seus sentidos propostos pela mídia da época no momento em que a montagem insere ao final do filme as imagens do carnaval que aconteceu paralelamente à Operação Cajueiro. Nesse sentido, o documentário é uma dura crítica ao apoio irrestrito da mídia à ditadura militar – não por acaso, o documentário Operação Cajueiro foi ignorado pela TV Sergipe na data de seu lançamento. No entanto, mais uma vez a montagem termina picotando as imagens do carnaval, fazendo-as perderem sua força desmanchando-se entre os créditos finais.


Entre problemas e virtudes, Operação Cajueiro – um carnaval de torturas é um filme necessário, como muitos disseram, e foi o que suscitou mais polêmica, e isso, por si só, já é um mérito.

quarta-feira, maio 14, 2014

La jetée (1962), Chris Marker


A primeira imagem que aparece em Sans soleil (1983), de Chris Marker, apresenta três crianças movendo-se de mãos dadas numa paisagem idílica na Islândia. A narradora, que lê as cartas do viajante Sandor Krasna (o narrador das imagens que surgem no filme), recita uma carta na qual o aventureiro afirma que gostaria de iniciar um filme com esta imagem, que seria, para ele, a imagem da felicidade. Ela deveria ser seguida por uma não-imagem, uma tela escura. Para o viajante, se os espectadores não conseguissem ver a felicidade na imagem das crianças na Islândia, ao menos eles veriam o escuro. Em La jetée (1962), Chris Marker também teria elaborado um personagem obcecado por uma “imagem da felicidade”: desta vez, a imagem de uma bela mulher num aeroporto, uma recordação que o protagonista acredita pertencer à sua infância.

Num mundo pós-apocalíptico, devastado pela Terceira Guerra Mundial, não há mantimentos, medicamentos, apenas cidades destruídas e radioatividade. Como não há nem presente e nem futuro possível, a única saída para os homens é o Tempo. No subsolo, alguns homens realizam experiências com a mente humana, e o protagonista do filme é escolhido para uma delas. Nesse experimento, o protagonista se envolve numa escavação pelas imagens de sua vida, criando um romance com a bela mulher no aeroporto. La jetée, intitulado como um foto-romance nos créditos iniciais do filme, apresenta uma decupagem tecida a partir de fotografias. Em Ontologia da imagem fotográfica, André Bazin propunha que se a morte é a vitória do tempo, a fotografia embalsamaria o tempo na tentativa de eternizar um instante visto na imagem fotográfica como uma recordação. Na concepção de Bazin, o cinema, por outro lado, seria uma espécie de “múmia da mutação”, pela sua capacidade de registrar imagens em movimento. Assim sendo, diante da impossibilidade do presente e do futuro num mundo pós-apocalíptico, o que resta são as imagens que remontam a um passado perdido, como numa fotografia, como nas fotografias que compõem a montagem do filme. A tentativa de lutar contra a morte e a catástrofe da guerra.

Vemos imagens de uma Paris em ruínas. Apesar da atmosfera de ficção científica que fala sobre o futuro (Terceira Guerra Mundial), o filme utiliza imagens documentais capturadas no passado, mais precisamente no contexto pós-Segunda Guerra Mundial. Marker cria uma diegese de ficção científica através da justaposição entre a narração da voz over em terceira pessoa e as imagens documentais de modo a tornar o apocalipse não uma imagem do futuro, mas tão somente uma imagem do passado.

Durante o experimento com sua mente, o protagonista vê imagens de plena beleza, como passeios feitos junto com a mulher do aeroporto. Temos, neste filme, um herói imobilizado, que aparece sentado numa cadeira com fios ligados seus olhos recobertos. Um personagem que não age, mas sim está entregue às imagens que o assaltam. Se lembrarmos do que Deleuze diz em A imagem-tempo, trata-se de um personagem vidente, não um actancial.

Se, por um lado, La jetée parece abolir o tempo das imagens cinematográficas e retornar à temporalidade própria da fotografia, a montagem se encarrega de conceder um ritmo às imagens e redimi-las com o movimento. Na sequência em que o protagonista retorna à cena em que o seu olhar observa atentamente a mulher no aeroporto, e então descobre que, na verdade, aquele teria sido o instante da sua morte, a montagem adquire um ritmo intenso, fazendo sucederem rapidamente, com campo e contracampo, e numa ordem progressiva as imagens da morte do personagem.

Pouco antes, o protagonista teria ido ao futuro, um mundo harmônico e feliz, mas teria sido obrigado a retornar ao mundo em ruínas. Os habitantes do mundo do futuro, que tinham uma espécie de terceiro olho, disseram-lhe que os homens deveriam aprender com o passado. Do futuro ele não traz nenhuma imagem. Do mundo devastado, as imagens do pós-Guerra. E um personagem que se agarra a um instante que parece infinito. Seria essa a lição de Marker? O que nos resta são as imagens da felicidade no instante da morte? Como a imagem da felicidade em Sans soleil: num momento posterior do filme, Krasna afirma que aquela paisagem onde as crianças estavam teria sido arrasada por uma erupção vulcânica. A imagem da felicidade: um instante de pura beleza eternizado pela câmera numa luta contra a morte.