domingo, março 30, 2014

Ela (2013), Spike Jonze


Theodore, um homem que gosta de escrever cartas com histórias de amor e que frequentemente é invadido por imagens fragmentárias do seu finado casamento, caminha por Los Angeles repleta de arranha-céus e de pessoas passando pelas largas avenidas, aprisionado num quadro cinematográfico que engrandece uma paisagem fria de concreto e "blue", um homem solitário submerso em plena multidão. A metrópole, esse espaço que proporciona o encontro constante com a coletividade, também é o lugar por onde se anda numa massa amorfa de passantes indiferentes uns aos outros. No meio dessa paisagem azul e opressiva, lado a lado de andantes que conversam ao celular, Theodore surge como um ponto vermelho, a mais vibrante e emotiva das cores.

Neste filme, a relação entre cor e espaço é impregnada pelas emoções de Theodore. São comuns cores como vermelho, laranja, rosa, salmão, azul e amarelo ligadas a um personagem sensível e solitário, como se seu estado de alma contaminasse a visão de tudo ao seu redor. Tal como a personagem de Monica Vicci em Deserto vermelho (1964), de Michelangelo Antonioni, uma burguesa neurótica que vive o mal estar da grande cidade e perambula no meio de uma paisagem com alguns elementos de cores intensas em meio a uma imagem acinzentada, enevoada e desfocada de uma fábrica, as cores são também aqui empregadas em prol da adesão do filme ao modo de percepção de seu narrador personagem.

Após o fracasso de seu casamento, Theodore inicia um relacionamento com um sistema operacional. A voz (que sabemos pertencer a Scarlett Johansson) dá a si mesma o nome de Samantha, é espontânea, e entre eles dois se forma um perfeito entrosamento nos diálogos. Samantha representa uma relação entre tecnologia e esquecimento tal como a busca de Joe por apagar as lembranças da sua última relação numa clínica em Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004), de Michel Gondry. Esses dois filmes apresentam em comum a temática da angústia diante da efemeridade de relacionamentos descartáveis no contexto da (pós?)-modernidade, mas este filme particular apresenta uma contradição entre as tecnologias feitas para estabelecermos comunicação para além do tempo e do espaço, e a nossa dificuldade cada vez maior em nos comunicarmos aqui e agora. Aos poucos, Theodore vai se apaixonando por Samantha, e ela também começa a se envolver com ele, o que provoca dúvidas sobre a sua condição de mero sistema operacional, conduzindo a uma vontade de tornar-se humana. O antigo dilema das criaturas técnicas criadas pelos humanos e abordadas nos filmes de ficção científica: o sonho em ser algo além da técnica, a procura pelas linhas de fuga, o amor, o desejo.

Apesar da sua vontade de tornar-se humana, Samantha jamais toma corpo no filme, permanecendo enquanto um acúsmetro (ou personagem invisível presente apenas através da voz over). No entanto, se o acúsmetro no cinema é geralmente um personagem que tem um corpo, mas que não vemos, neste caso particular estamos em contato com uma voz sem corpo. O corpo, aliás, é abordado no filme como a essência da separação entre o humano e a máquina (mais precisamente, neste caso, um conjunto de dados abstratos). O corpo, o que nos torna seres ancorados num determinado espaço e condenados ao perecimento no decorrer do tempo. Num encontro entre Theodore e Samantha e um casal de amigos dele, Samantha afirma que, apesar de desejar se tornar humana, os sistemas operacionais têm a seu favor o fato de serem livres das amarras do tempo e do espaço.

A voz over no cinema assume a característica de ser uma voz desvinculada de um espaço determinado. Uma voz que ouvimos sem conhecer o seu locutor poderia se assemelhar a um deus (lembrando que Deus surge diversas vezes na Bíblia como uma voz, alguém transcendente e poderoso) ou poderia nos remeter à nossa primeira experiência de contato com o mundo exterior, quando ainda estávamos no ventre materno e ouvíamos a voz da mãe. Assim sendo, a voz de Samantha estaria muito mais próxima da representação do anseio de afeto que teríamos diante da voz materna. 


Numa sequência, Samantha conta que decidiu escolher uma música para que ela se tornasse uma "fotografia" dos momentos junto com Theodore. Ouvimos uma bela música de ritmo intenso nas teclas do piano, enquanto vemos imagens de Theodore deambulando pela cidade, olhando para os altos edifícios da janela de seu apartamento, observando o monumento de um avião num parque, comprando frutas num supermercado,  sempre conversando ao celular com Samantha. Através da música, Samantha torna-se imagem. A música, essa arte que provoca sensações no nosso corpo por meio do som, é por meio dela que a voz de Samantha, de certo modo, assume um "corpo". Já dizia Michel Chion em O som: "se, quando se trata de som, temos um mito em torno dele, é porque vinculamos, na palavra e no que esta evoca, o abstrato e o concreto, o espiritual e o material".

Aos poucos Samantha vai se afastando de Theodore, envolvendo-se com outras vozes e outros mundos, até que um dia ela se despede, contando sobre um misterioso desaparecimento de todos os sistemas operacionais. Numa cena, Theodore está desesperado após um breve sumiço de Samantha e depois finalmente ter ouvido uma voz fria e distante, ele questiona se ela estava falando com outra pessoa, e então observa, sentado numa escada de um metrô, as pessoas conversando ao celular, como se todos estivessem envolvidos em relacionamentos com sistemas operacionais. Nessa hora, me lembrei das vezes em que me irritei com pessoas que usavam whatsapp enquanto falavam comigo, ou quando fizeram o mesmo tipo de reclamação para mim. É nesses momentos em que vemos que a ficção científica, que apresenta elementos fantásticos envolvendo a tecnologia, não nos mostra nada além da mais pura realidade.