terça-feira, novembro 30, 2010

Belo Horizonte


Eu brinquei tantas vezes com o nome dessa cidade, sempre dizendo que trazia já na denominação um Belo Horizonte. E não é que é mesmo? Belo Horizonte trouxe novas perspectivas para minha vida. Na verdade, trouxe uma perspectiva para quem não tinha nenhuma. Cidade que me deu esperança!

Dardenne


Os filmes dos irmãos Dardenne são, acima de tudo, humanos. Até a câmera fica colada nos seus personagens num corpo a corpo como se fosse gente. É uma identificação cortante, que faz a gente sofrer junto com eles - não no sentido melancólico, mas no sentido cru da palavra. Filmes que abordam os problemas sociais a partir das pessoas - os problemas sociais perpassam as suas vidas, mas seus personagens tem vida própria e escolhas próprias no meio disso tudo. Há pausas para a gente ficar mais perto deles. Há violência pra gente se revoltar com eles. Há também um mundo cruel. E pessoas cruéis. E pessoas que mudam. Sim, principalmente isso, que mudam. Os Dardenne, assim como um cineasta como Bresson, acreditam na ascese de seus personagens. E assim, no final do filme eu sinto aquela dor no peito de quem mudou um pouco também - pra quem sabe ser mais feliz.

Imagem: L'enfant (2005).

segunda-feira, novembro 29, 2010

Em crise

Tinha deixado um texto aqui pra completar depois e publicar. Fui ler agora e não concordo com quase nada do que eu disse.

A pós-modernidade me deixou doida, muito doida, muito doida demais?

quinta-feira, novembro 25, 2010

Minha opinião sobre filhos

Não terei filhos, não transmitirei a nenhuma criatura o legado da nossa miséria

Brás Cubas, por Machado de Assis

domingo, novembro 21, 2010

A solidão não existe

Oitavo fragmento da décima terceira voz

Sempre virá. A solidão não existe. Nem o amor. Nem o nojo. Odeio quando te enganas assim, girando entre as panelas. A vida é agora, aprende. Ainda outra vez tocarão seus seios, lamberão teus pêlos, provarão teus gostos. E outra mais, outra vez ainda. Até esqueceres faces, nomes, cheiros. Serão tantos. O pó se acumula todos os dias sobre as emoções. São inúteis os panos, vassouras, espanadores. Tenho medo de continuar. E não suportaria parar, ondas de Iemanjá. Vês como evito pedir ajuda? Vieram da noite, eram muitos, assim compreendes? Talvez mais que doze, muito mais, incontáveis todos esses doze, já faz tempo. Às vezes sonho com eles. Com todos. Com quem não conheço. Por um momento, cede. Não sejas assim implacável, incorruptível. Não paires, esquece as asas. Fecha os olhos. Chafurda, chapinha. Afunda o rosto, solta a língua. Lambe os orifícios. Deixa a baba escorrer. Geme, cadela no cio. Como um macaco, acaricia teus próprios colhões. Estende tua pata peluda para o Outro, delicadamente. Cata os piolhos do Outro. Deixa que catem os teus. Esmaga entre os dentes, engole. Fala-me do gosto.

Dodecaedro, novela do livro Triângulo das águas, de Caio Fernando Abreu.

sábado, novembro 20, 2010

Outra página

Já olhava para tudo como se estivesse se despedindo. Como quando lemos um livro com medo de esquecer e cada frase, cada verso é lido como obstáculo e se torna pedra da memória. Ou quando lemos uma página duas vezes com medo de que ela escape de nós. Amor ela tinha ali. E muito. Mas será que ia encontrar amor em outro lugar?

quarta-feira, novembro 17, 2010

Fragmentos sobre um filme de Tarkovsky


Hoje revi Nostalgia (1983), de Tarkovsky. Trata-se de um daqueles filmes que se tornam mais prazerosos da segunda vez, dado que passam a ser mais compreensíveis. Alguns pensamentos que tive a respeito do filme...

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Um filme que aborda a relação nostálgica de seus personagens com a sua "terra de origem", trazendo à tona uma espécie de diáspora. Lembremos que estamos na fase de exílio de Tarkovsky, pois esse diretor não tinha boas relações com o estado soviético, portanto, existe uma clara identificação entre a trajetória do cineasta e a dos seus personagens. O poeta Andrei Gorchakov vai à Itália em busca de dados biográficos de um músico russo, Sosnovsky, que passou uma temporada em Bolonha, e acabou retornando à Rússia por amor a uma escrava russa, mesmo sabendo que chegando lá se tornaria um escravo. Temos também Eugenia, que diante das paisagens italianas por diversas vezes relembra a cidade de Moscou. Eugenia conta também a história de uma serva que matou os senhores e se suicidou pelo ódio que tinha por não poder regressar à Calábria.

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As escolhas estéticas de Tarkovsky, como era de se esperar, divergem absolutamente da linguagem clássica. Em nenhum momento do filme ele se vale do manjadíssimo campo/contracampo. Para filmar uma conversação, em lugar do campo/contracampo, a câmera mostra apenas um dos personagens envolvidos num diálogo, ou se detém em plano geral enquadrando ambos.

Outra ousadia estética de Tarkovsky seria a temporalidade e a montagem que por vezes segue de modo cinematográfico os princípios da técnica literária do fluxo de consciência, adotada por autores como James Joyce e Virginia Woolf. Afinal, Tarkovsky vai além de mostrar o passado dos personagens - sua estética sugere que estamos em contato com o inconsciente dos personagens, ou da sua memória involuntária. Além disso, o diretor se utiliza de variações cromáticas ao adentrar no universo do sonho ou da lembrança, recorrendo a tons acobreados ou ao preto-e-branco. De repente, nós vemos a encenação do momento em que o filho de Domenico foge dos seus braços, e finalmente se senta numa escada para contemplar o mundo. Câmera lenta, preto-e-branco. O menino olha para o pai. A imagem fica colorida. Diante da paisagem, ele pergunta: "é o fim do mundo, papai?". Domenico havia prendido a família durante sete anos acreditando que o fim do mundo estava próximo...

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Domenico encena um dos momentos mais arrebatadores do filme. É quando ele sobe numa suntuosa estátua de algum herói sobre um cavalo para se suicidar em público. A câmera realiza um travelling vertical para cima, assenta diante da imagem de Domenico de costas tendo ao fundo enormes estátuas de deuses. Em plongée é possível ver pessoas na escada, hipnotizadas, que vieram presenciar o espetáculo. Antes de atear fogo ao próprio corpo, Domenico brada: "Vocês nos chamam de loucos e nos isolam dos sãos.. mas foram vocês, sãos, que levaram o mundo à catástrofe". Por fim, Domenico, que tanto temia o fim do mundo, realiza o seu apocalipse. E vemos os policiais avançando sobre as escadas cheias de pessoas - do ponto de vista inverso ao da célebre cena da escadaria de Odessa, realizada por outro cineasta russo, Eisenstein, em O encouraçado Potenkim. Não por acaso essa cena de Nostalgia é realizada na antiga capital de um dos maiores impérios da história da humanidade: Roma, capital do império romano. Uma cena mítica, que está ali para destronar impérios...

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O historiador Eric Hobsbawn se refere ao século XXI como "a era das catástrofes". Não por acaso: Primeira e Segunda Guerra Mundial, holocausto, Guerra Fria... "Mas foram vocês, sãos, que levaram o mundo à catástrofe!", grita Domenico.

Assim como constataram Adorno e Horkheimer em A dialética do esclarecimento, a grande contradição do iluminismo consiste no projeto da modernidade baseado na razão e tendo o progresso tecnológico como impulso que conduziria a humanidade a um futuro melhor. Mas a razão instrumental levou o conhecimento a servir a fins econômicos, e a tecnologia de produção em massa encontrou o seu auge na produção industrial durante a guerra. A catástrofe da modernidade! O progresso conduziu à guerra pelo novo império, o império no tempo do capitalismo...

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O plano final, de Andrei estático situado ao centro do quadro tendo uma paisagem bucólica como fundo, demonstra um diálogo com a pintura. A busca pela imagem na duração, no transcorrer do tempo. Como nas fotografias descritas por Walter Benjamin, aquelas antigas fotografias em que o modelo vivia o instante, inseria-se na duração, dado que as películas tinham pouca sensibilidade à luz e as fotos demoravam a ser tiradas. Essas primeiras fotografias obrigavam os modelos a viver aquela duração típica da pintura, quando eles aguardavam os pintores pintarem a sua imagem durante horas...

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No começo do filme, Eugenia sai em busca da paisagem que a lembra Moscou. Andrei afirma se irritar com a busca incessante de Eugenia pela beleza.

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Diante da disseminação generalizada da imagem pela publicidade, um retorno à beleza kantiana. As imagens que esperam. É também isso o que sugerem, no diálogo com a pintura, filmes como L'Hypothese du tableau volé (1979), Raoul Ruiz, e Caravaggio (1986), de Derek Jarman, analisados por Fredric Jameson em As transformações da imagem na pós-modernidade. Jameson defende nesse ensaio a necessidade de uma arte utópica, indo de encontro à noção de "fim da história".

Mas o que vemos é o suicídio de Domenico e de Andrei, o desespero concretizado. E o paraíso é o belo "quadro" de Andrei imerso no cenário idílico da sua infância. O sonho do retorno ao seu "lugar de origem".

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Todavia, será que Eugenia está no filme para se rebelar diante da arte aurática? Eugenia defende a impureza da arte: ela afirma que um tradutor é um poeta, um criador, enquanto Andrei recomenda que ela leia apenas o original. E ela se revolta diante de Andrei: "você não quer mulheres como eu! você só quer Nossas Senhoras!". A quebra da aura é, afinal, uma profanação!

segunda-feira, novembro 15, 2010

Ela foi passear... com a cabeça em todos os lugares...

Certa vez, eu estava num show de Orquestra Contemporânea de Olinda na cidade da banda, quando, no intervalo, ouvi tocar Naurêa. Na mesma hora eu disse ao anfitrião: "É música da minha terra!". Naquele momento, eu me dei conta de que, onde quer que eu estivesse, e mesmo tendo uma relação de amor e ódio com o lugar onde nasci, eu sempre vou carregar algo daqui comigo para onde quer que eu vá.

Assim como trouxe na bagagem, depois dessas três vezes em que fui a Pernambuco, tantas coisas de lá. Não são posses, não é uma camisa onde há escrito "Saudades do Recife", mas há uma saudade no meu peito. Levo comigo daquele lugar as lembranças do carnaval mais bonito da minha vida, das ruas onde o arcaico e o novo convivem lado a lado, dos "rios, pontes e overdrives". E lá também eu encontrei um bocado de dor minha e de miséria alheia.

Por isso muita gente me chama de metida a pernambucana. Dizem que só gosto do manguebeat porque fui ao Recife. Afinal, vangloriam-se de ser fãs de Nação Zumbi, Otto, Eddie, etc, desde muito antes de mim. Disputinha PIMBA besta. E ironizam afirmando que quando eu chegar em BH vai ser a mesma coisa, vou começar a gostar de música mineira e não sei o que lá. Ao ouvir isso, só consigo lembrar daqueles rockeiros da adolescência vinho-do-frei-13-de-julho, que tinham mania de chamar de "posers" aqueles que eles achavam que não curtiam rock de verdade, mas ouviam só para aparecer. Quem chamava os outros do "posers" sim era rockeiro de verdade! (risos).

Pois. Que bom que já aqui em Aracaju, eu me apaixonei pela poesia do pernambucano João Cabral de Melo Neto. Ele começou a escrever sobre o Recife quando estava na Espanha: o material de sua poesia é a memória. Do mesmo jeito, meu carinho imenso pela sua obra vem da saudade. E até das imagens que crio da Espanha, de Angola, dos países que ele visitou na diplomacia e sobre os quais carinhosamente e criticamente escreveu. Agora vou fazer uma pesquisa de mestrado sobre dois filmes que abordam o imaginário urbano de Cabral. Vou estudar filmes que falam, entre outras coisas, sobre o Recife, lembrando que sou de Aracaju e estarei morando em Belo Horizonte durante a pesquisa.

E desejo muito, mas muito mesmo, que assim como aconteceu em Pernambuco, eu também me apaixone pela cultura mineira, que eu seja uma "metida a mineira", como quiserem chamar. Espero que essa praga pegue. Mas mesmo antes de ir pra Minas eu já sou admiradora de Carlos Drummond de Andrade, mas ainda tenho muito o que ler dele, pois li apenas uma pequena antologia, e devo ler Guimarães Rosa, como também conhecer melhor a música de Milton Nascimento, entre tantas outras maravilhas. Mas ainda há tanto, mas tanto para conhecer, Minas Gerais, de seus lugares, sua literatura, sua música, seu cinema... E quem sabe eu goste, mas talvez também não me encante tanto e a tal praga não pegue...

Levo daqui de Sergipe a saudade do sertão onde fui criada até os cinco anos, em Porto da Folha, a lembrança das águas mais gostosas do mundo, as águas do Velho Chico por ali em Gararu, e uma música como "se vira com o próprio nariz, quebra prato se está com raiva, ela não consegue sair da sua casa". Inclusive quando estava no Recife fui ao show dessa banda que eu vi se apresentar um trilhão de vezes em Aracaju, e também mostrei a uns amigos de outro anfitrião as músicas da Plástico Lunar. E mais: levo também a dívida de ler Antônio Carlos Viana. Não porque ele é daqui, nem porque eu tenha obrigação de dar valor ao que é da minha terra, mas porque me parece ser um bom escritor. No mais, infelizmente, tenho de admitir que este não é o meu lugar, nem é o que achei mais interessante.

Amando ou não os lugares por onde ainda vou passar na minha vida, uma coisa é certa: não quero ir a canto nenhum desse mundo sem que as ruas, as pessoas, os sons, as imagens deixem vestígios em mim. E não posso negar que o meio em que fui criada deixará sempre uma marca em mim. Mas não tenho raízes. Quem tem raízes é árvore. E as árvores estão lá para deixar o lugar mais bonito. Já eu... eu sou uma desertora mesmo!

Lembrei de uma música cantada por um mineirinho bão, Milton Nascimento, veja só, olha a praga aí...

Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu caçador de mim

Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mim

Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito a força, numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura

Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
O que me faz sentir
Eu, caçador de mim

domingo, novembro 14, 2010

Dorzinha

Sinto essa pequena dor
e tudo que eu quero é adormecer
para não adoecer de tanto prever o futuro
quero acordar só na hora em que a vida de verdade começa
minha vida não é esta
já me separei deste mundo.

sexta-feira, novembro 12, 2010

Mallarmé

Stéphane Mallarmé, chamado por alguns de "inventor da poesia moderna", é um desses autores que acusam de ser demasiado hermético. E dizem da sua leitura difícil um trabalho antes do que prazer. Alguns de seus textos com os quais comecei a entrar em contato me pareceram difíceis de compreender sim - duas lidas para um poema e ainda a sensação de tanta incerteza. Porém, será que não é tão simples entender o que ele tem a dizer com o seguinte poema em prosa?

Pobre menino pálido

Pobre menino pálido, para quê gritar na rua a plena voz tua canção aguda e insolente, que se perde em meio aos gatos, senhores dos telhados? pois ela não há de atravessar os postigos dos primeiros pisos, por detrás dos quais desconheces pesadas cortinas de seda avermelhada.

Entretanto, cantas fatalmente, com a segurança tenaz de um homenzinho que vai só pela vida e, não contando com ninguém, trabalha para si. Tiveste algum dia um pai? Não tens sequer uma velha que te faça, surrando-te, esquecer da fome, quando chegas sem tostão.

Mas trabalhas para ti: em pé nas ruas, coberto com roupas desbotadas de homem, uma magreza prematura e tão alto para a idade, cantas para comer, com obstinação, sem baixar teus olhos maus para os outros meninos que brincam na calçada.

E teu lamento é tão alto, tão alto, que tua cabeça descoberta a erguer-se no ar à medida que sobe tua voz parece querer-se ir dos teus ombros miúdos.

Homenzinho, quem sabe ela não irá embora um dia, quando, depois de muito gritar pelas cidades, terás efetuado um crime? um crime não é muito difícil de efetuar, basta ter coragem depois do desejo, e tais, que... Teu rosto miúdo é enérgico.

Nenhum tostão desce ao cesto de vime que seguras na mão comprida suspensa sem esperança em tuas calças: hão de tornar-te mau e cometerás um crime um dia.

Tua cabeça se ergue sempre e quer deixar-te, como se de antemão soubesse, enquanto vais cantando de um jeito que se torna ameaçador.

sábado, novembro 06, 2010

Desculpe

- Nunca na minha vida alguém fez eu me sentir tão mal comigo mesmo. Não tanto pelo que eu fiz, mas pelo jeito que você ficou. Desculpe.

Mal sabia ele que o que ele havia me dito fez eu me sentir tão mal como nunca antes.

quarta-feira, novembro 03, 2010

A poesia em pânico


Indo atrás das influências do poeta João Cabral de Melo Neto, comecei a ler o poeta Murilo Mendes ontem à noite. Cabral se inspirou em Murilo Mendes na busca por uma poesia concreta, visual, que fala através da matéria. Não li nenhuma análise da obra de Mendes, mas a partir da obra pela qual me inicio, A poesia em pânico (1938), percebo que há nele uma espiritualidade muito forte, que no entanto está num processo dialético com o seu materialismo.

Por vezes ele acredita estar tomado pelo demônio, e chega a afirmar no poema O exilado, "Os sentidos em alarme gritam/o demônio tem mais poder que Deus" - reconhece sua humanidade, e por ser tão humano se encontra geralmente mais próximo do diabo. É atormentado pelo amor platônico por Berenice, e ele diz no poema A usurpadora, "o violento amor que eu deveria consagrar à Igreja" - parece que não se conforma em dedicar a Berenice maior adoração do que ao próprio Deus e à religião. Em toda parte Murilo Mendes observa a profanação do sagrado, própria da forma de sua poesia, que se comunica através das coisas, em A condenação ele declara: "Ai de mim! ai de mim! que vi sempre as constelações em maiô/ que nunca vi Maria na sua glória de imaculada/ que vida toda a verdade por imagens".

Mas Murilo Mendes, como bom cristão, carrega também consigo a culpa - por todas as suas fulgurosas emoções, pelo seu desejo de consumação no amor, pelos erros que possa ter cometido.

O resgate

Vós que pensais atacar as igrejas, vinde a mim, incendiai-me.
Eu sou uma igreja em ruínas que vai submergir

- Não há água do batismo e da graça-
Apontai para o meu corpo, altar e sacrifício,

Para minha cabeça que guarda todas as imagens,

Para meu coração ansioso de se consumir em outros.
Ó filhos transviados do meu Pai celeste,

Aqui estou eu... perdôo a todos e não me perdôo.

Queimai-me.

segunda-feira, novembro 01, 2010

Tropa de elite 2 (2010), José Padilha


Após O nascimento de uma nação (1915), o diretor americano D.W.Griffith foi muito criticado pelo teor racista de seu filme, que curiosamente é considerado por alguns como o filme que "criou" a linguagem cinematográfica - ou mais especificamente a linguagem clássica. Para se redimir do filme reacionário em termos ideológicos e revolucionário em questão de linguagem, Griffith realizou Intolerância, que trazia uma crítica às mais diversas formas de intolerância na humanidade. Assim como Griffith, o diretor José Padilha parece também buscar se desculpar em relação ao seu outro filme.

Alguns me avisaram que Tropa de elite 2 era um filme mais maduro. Concordo. Porém considero o primeiro se não melhor, todavia mais instigante. O primeiro Tropa de elite era mais problemático: no bom e no mal sentido. Ele contribuía para fomentar ideologias fascistas entre os brasileiros por apostar numa identificação perigosa com um personagem envolvido até o pescoço com a violência urbana: o Capitão Nascimento. E por vezes ironizava os intelectuais da universidade que apontam conclusões fáceis diante de problemas extremamente complexos (vide a simplificação da obra de Michel Foucault por um professor numa aula de Direito). Por fim, o primeiro Tropa de elite causava polêmica, dividia opiniões, atraía ódio e admiração pela escolha de um narrador de ética bastante duvidosa. Mas ele não passava de uma mímesis levada ao extremo dos sentimentos dos habitantes das metrópoles envolvidos pelo medo e pela revolta.

Dessa vez não é assim que a banda toca. Por mais que o Capitão Nascimento continue a ser o narrador e herói, o Padilha não deixa a ambiguidade fazer com que o filme fuja ao seu controle. Aliás, até mesmo em termos de distribuição esse filme é mais controlador. O diretor procurou combater a pirataria, e foi criado todo um arsenal para evitar que o filme invadisse as barraquinhas de camelô pelo país. Afinal, sabemos que não era só a redenção o que o Padilha buscava com uma continuação, mas também e principalmemte notoriedade e muito dinheiro.

Nesta edição, Tropa de elite busca se auto-afirmar como um filme de esquerda. Traz inclusive o personagem do deputado Fraga baseado no deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), do Rio de Janeiro, que realizou uma CPI contra as milícias e hoje em dia é ameaçado de morte, mas também foi reeleito e teve como cabo eleitoral Wagner Moura nesta eleição. O nome que Marcelo Freixo recebeu na ficção é baseado no deputado do DEM, Alberto Fraga, que se empenhou contra o desarmamento. Trata-se daquele velho trocadilho que o Padilha gosta de fazer, como colocar o sobrenome de Sandro do Nascimento no capitão do BOPE.

Mas se no primeiro filme os inimigos de Nascimento são os traficantes, agora ele se dá conta de que existe uma rede muito maior de relações de poder envolvidas, abordando essencialmente o Estado. Dessa vez, no enterro do seu amigo policial não é a bandeira do BOPE que é colocada sobre a bandeira do Brasil, como se o BOPE fosse uma espécie de organização paralela, mas sim a bandeira do Brasil, simbolizando o Estado brasileiro, que é posta por cima da bandeira do BOPE.

A construção do espaço fílmico, que elabora o relato de espaço da cidade, também se dá de outro modo: quando a partir do ponto de vista do Capitão Nascimento ainda pertencente ao batalhão do BOPE, esse espaço era produzido no corpo-a-corpo da câmera com o morro; já a partir do olhar de Nascimento enquanto subsecretário de Segurança Pública, temos o ponto de vista a partir de imagens aéreas de um helicóptero e o olhar tecnicista de uma guerra produzida pela indiferença diante de traficantes que morrem como pontinhos na favela, trazendo assim um enquadramento que muda completamente a forma de olhar.

E o filme desenvolve a sua tese dialogando com o cinema americano de gângsters, inclusive com cenas de carros sendo estraçalhados por tiros orquestradas pela leveza do movimento da câmera ou pelo impacto da montagem ágil, e ainda Capitão Nascimento tem muito do mafioso Michael Corleone de O poderoso chefão, como o conflito estabelecido entre seu mundo de poder e violência entrando em choque com o âmbito familiar. Também persiste na escolha da filmagem em câmera na mão, numa aproximação com o cinema novo e buscando também algo de Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, no conflito ético e político de Nascimento, agora subsecretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, bem como conta com a mesma ousadia de Glauber em apresentar personagens que representam personalidades da esquerda e da direita do seu tempo; e há ainda algo dos travellings percorrendo a aparente perfeição de Brasília como assim fez Joaquim Pedro de Andrade em Brasília, contradições de uma cidade nova (1967).

Assim Padilha apresenta sacadas geniais quando, por exemplo, representa a morte de André Matias. É neste momento em que Padilha vai de encontro à prática da tortura, que muitos afirmaram ter sido defendida por ele no primeiro filme. De fato, ao adotar a tortura os seus personagens do filme anterior arrancavam verdades dos torturados colocando-os no saco, e em seguida conseguiam prender os traficantes. Na segunda parte, ora ora, André Matias tortura um homem com o objetivo de chegar aos ladrões das armas de uma delegacia. Só que são justamente os policiais das milícias os ladrões das armas. Ao que o assassinato de Matias é representado com ele caindo de costas, após receber o tiro de um colega policial, de forma banal, sem glamour. Sequer vemos o rosto do cadáver do personagem que antes, no último plano do primeiro Tropa de elite, finalizava o filme dando um tiro na cara do espectador.

E se no primeiro Tropa de elite esse tiro na cara de nós espectadores aponta para um niilismo, um clima de descrença quanto a qualquer solução para as dispersas guerras civis travadas nos morros cotidianamente, Tropa de elite 2 mostra a ação política de Nascimento e deputado Fraga na CPI das milícias, demonstrando que acredita na ação do sujeito em prol da transformação social (aquela velha utopia do cinema moderno brasileiro), justo nos tempos em que se fala tanto em "fim da história".